Técnica inovadora acelera o estudo de proteínas de difícil acesso na célula
Texto: Agência FAPESP*
Estudo conduzido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e publicado no Journal of Biological Chemistry pode facilitar a busca de novos medicamentos para tratar doenças como, por exemplo, a mucolipidose tipo 4 – condição rara, mais prevalente na população judaica e que provoca atraso psicomotor, deficiência visual e graves problemas digestivos.
Esse tipo de enfermidade está relacionado com a disfunção de proteínas existentes na membrana de organelas – as estruturas internas das células. E, ao testar candidatos a fármacos em laboratório, os compostos precisam cruzar uma série de barreiras até atingir o alvo: a membrana externa da célula, seguida pelo citoplasma e, finalmente, a membrana da organela.
No caso da mucolipidose tipo 4 o alvo é a proteína TRPML1, localizada na membrana do lisossomo – pequena organela em forma de vesícula que tem a capacidade de degradar e expelir partículas para fora da célula. Essa proteína forma estruturas conhecidas como canais iônicos, que regulam a entrada e a saída de íons da célula ou das organelas. A alteração na função de TRPML1 também está associada ao avanço de tumores e à maior suscetibilidade à úlcera péptica.
“Outro desafio é isolar essas proteínas de membrana para estudo, por isso temos que estudá-las em célula viva, em tempo real”, explica Micael Cunha, pesquisador do Centro de Química Medicinal (CQMED) da Unicamp e primeiro autor do artigo.
Um agravante no estudo dos lisossomos é que essas estruturas são pequenas quando comparadas à célula como um todo e os compostos que estão sendo testados precisam ser capazes de encontrá-las, relata Cunha, que é bolsista de pós-doutorado da FAPESP. “Se a célula fosse uma casa, o lisossomo seria uma poltrona na sala de estar”, compara.
“Para estudar essa proteína de membrana do lisossomo, o principal desafio era saber se o composto que estávamos testando tinha de fato alcançado o alvo [TRPML1]”, acrescenta Rafael Couñago, pesquisador principal do CQMED e coautor do artigo.
Até então, cientistas que se debruçaram no estudo de proteínas de membrana basicamente se apoiaram em duas metodologias. Uma que oferece resultados limitados e outra cuja preparação é muito custosa e demorada.
Diante desse cenário, a equipe do CQMED resolveu testar a metodologia chamada BRET (sigla em inglês para transferência de energia por ressonância de bioluminescência), que já havia sido empregada com sucesso em bactérias, para a busca de novos antibióticos (leia mais em: agencia.fapesp.br/39096/).
Caminho abreviado
A metodologia BRET basicamente consiste em criar um sistema de fluorescência na célula que só funciona se o composto em teste estiver ligado na região correta da proteína. “Desenvolvemos uma molécula fluorescente baseada em um composto que reconhecidamente se liga à proteína-alvo. E à TRPML1 adicionamos uma segunda proteína que emite luz azul. Quando as moléculas estão juntas, o sistema ‘acende”‘, explica Cunha.
“Não tínhamos certeza de que daria certo, pois até o momento nenhum laboratório havia produzido um sistema de BRET para canais iônicos, como TRPML1. Além disso, essas proteínas são muito difíceis de serem alcançadas na célula. Testamos e os resultados foram muito promissores”, complementa Cunha. “Isto pode abreviar várias etapas na busca de novos compostos, pois já sabemos se o experimento funciona dentro de um sistema vivo, ainda que simplificado, como uma célula”, diz Couñago.
Além da vantagem de já testar o comportamento do composto em células vivas, o uso da metodologia para estudar TRPML1 mostra a relação entre a concentração do composto e o tempo que ele ficou ligado à proteína. “Esse tipo de informação ajuda a selecionar a molécula que fica mais tempo acoplada e, futuramente, ajudará a definir as doses necessárias para o efeito do medicamento”, explica Cunha.
“Como nós testamos muitos compostos em paralelo, essa metodologia ajuda a priorizar as moléculas que são fortes candidatas a seguir para os estudos pré-clínico”, informa Katlin Massirer, pesquisadora do Centro de Biologia e Engenharia Genética (CBMEG-Unicamp), coordenadora do CQMED e supervisora de Cunha.
“Os resultados significam um possível avanço para a busca de compostos que podem, futuramente, tratar pessoas com disfunções lisossomais”, complementa a pesquisadora.
Com o avanço no estudo da TRPML1, os pesquisadores preveem o uso combinado da técnica de BRET com outra recentemente desenvolvida para o estudo de canais de membrana chamada de indicadores de cálcio geneticamente codificados. “Enquanto a BRET indica o tempo que o composto ficou acoplado, a outra indica a potência dessa ligação”, informa Cunha.
Uma vez escolhidos os melhores compostos com atividade na célula, eles são submetidos a testes de laboratório cada vez mais complexos, como ensaio animal e depois com humanos, que podem levar de oito a dez anos e custar centenas de milhares de dólares.
“É um grande funil de seleção de moléculas e muito poucas chegam à prateleira da farmácia. Por isso, todas as formas de acelerar essa busca inicial são sempre muito bem-vindas”, conclui Massirer.
O artigo A novel BRET-based assay to investigate binding and residence time of unmodified ligands to the human lysosomal ion channel TRPML1 in intact cells pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0021925823018355?via%3Dihub.
* Com informações do CQMED, apoiado pela FAPESP.
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